O Partido Partindo da Plataforma
…ou dissecando o partido anarquista I
1. O que é a Plataforma
1.1 Geografia, calendário e horizonte
1.2 Debate no anarquismo
1.3 Diálogo com o marxismo
2. Arsenal teórico
2.1 Sociedade e luta de classes
2.2 Indivíduo, humanidade e consciência
2.3 Utopia comunista libertária
3. O Partido Partindo da Plataforma
3.1 Processo de organização
3.2 Papel antes e durante o período revolucionário
3.3 Relação com os movimentos de massas (em especial o sindicalismo)
3.4 Programa
3.5 Disciplina e responsabilidade coletiva
1. O que é a Plataforma
1.1 Geografia, calendário e horizonte
A Plataforma Organizacional dos Comunistas Libertários é um texto de 1926 assinado por Dielo Trouda, agrupamento onde anarco-comunistas russos e ucranianos exilados em Paris se concentravam. Pouco anos antes de ali estarem e se reunirem, estes haviam participado ativamente do processo revolucionário de suas terras. Entre eles está Piotr Arshimov que sofrera com a repressão do regime bolchevique, e também Nestor Makhno, líder das guerrilhas ucranianas durante os primeiros anos após a Revolução de 1917 que no momento desta escrita, entretanto, trabalha como metalúrgico.
O panfleto por si mesmo se apresenta a priori como uma reflexão e um esforço de resposta a cerca das consequências da carência organizativa nos meios anarquistas durante o período revolucionário vivido – esta ausência teria sido uma das principais causas da precária influência anarquista nos rumos tomados pelo processo político soviético. A partir deste balanço crítico e autocrítico da participação libertária no movimento de massas, intenta-se contribuir com a saída do anarquismo “do pântano da desorganização”1, contribuir com a cura desta “doença” que se “introduziu no organismo do movimento anarquista e o tem abalado por dezenas de anos”. Na Plataforma se localiza o esboçar dum caminho que transforme esta nefasta situação caótica. Ela é uma espécie de manifesto programático para a construção de uma organização política anarquista. Um chamado aos anarquistas clamando pela atuação unificada e coordenada por uma teoria, um programa, uma estratégia e uma tática.
Escrita numa época de intensa agitação política popular, quando trincheiras radicalizadas da guerra de classes eram diariamente cavadas ao redor de diversos cantos do mundo – a própria Revolução da qual os autores da proposta de Plataforma fizeram parte, repercutira imediatamente na classe trabalhadora fomentando esperanças e catalisando ânimos e disposições para a luta. Para entender este panfleto é preciso colocar-se num calendário e numa geografia onde greves gerais, fábricas e fazendas expropriadas conviviam com guerras civis e conflitos imperialistas. Makhno num curto texto publicado pouco após veio a escrever: “Neste momento, os acontecimentos se precipitam em toda Europa, inclusive na Rússia, prisioneira dos bolcheviques. Está próximo o dia em que será necessário participarmos ativamente dos acontecimentos. Se nos apresentarmos outra vez sem estarmos organizados, previamente e de maneira adequada, seremos novamente incapazes de impedir que os acontecimentos evoluam no turbilhão dos sistemas estatais.”
Parece-me ser indubitável a importância política deste documento exatamente pois expressa um balanço sobre o período de acirramento radical da luta de classes redigido por militantes revolucionários eslavos muito ativos durante este. Trata-se duma proposta extraída a partir de duras lições aprendidas e marcadas em carne própria. Hoje – distante quase nove décadas da Revolução de Outubro e mais de oito décadas da publicação da Plataforma – e dado os rumos tomados pela revolução e seu Estado Socialista, não é pretensão afirmar o valor que este discurso pode ter na formação de qualquer militante revolucionário, qualquer pessoa que tenha sinceras esperanças de vermos novamente o capitalismo fraquejando – independente de posição adotada frente a este texto anarco.
1.2 Debate no anarquismo
Já na apresentação do próprio documento se prevê prováveis polêmicas vindouras dentro do campo anarquista. É previsto “que vários representantes de um estilo próprio individualista e anarquismo caótico irão nos atacar, espumando pela boca”. Todavia, o que os autores deste sucinto documento não premeditaram foi que críticas à Plataforma seriam tecidas também por anarquistas igualmente comunistas libertários. Além dos porta-bandeiras da organização política de síntese anarquista (como Volin), Errico Malatesta e Camilo Berneri viriam a se dedicar à escritos visando esclarecer suas discordâncias com a proposta. Ambos questionaram se o Partido Anarquista projetado pela Plataforma seria de fato anarquista. Ambos acusaram e denunciaram o manifesto programático de possuir desvios bolcheviques.
Makhno e Arshimov demonstram, em suas respostas a estas críticas, a surpresa que tiveram ao serem atacados mesmo por libertários apologistas da importância da organização anarquista. A dupla tenta dialogar com estes, sem serem capazes de por completo esconderem suas frustrações. Mas, escapando a estes esforços, a Plataforma acabará por não ter as consequências esperadas para sua época, tanto no debate teórico anarquista quanto na sua concretização. Fora rechaçada por boa parte do público-alvo por ela própria estipulado, e nenhuma das tentativas de organização anarquistas pautadas nestas teses do Dielo Trouda tivera grande relevância ou mesmo permanência no tempo. É indiscutível que a Plataforma não atingira as metas almejadas por Makhno e Arshimov, já que ela não foi capaz de resolver o estado “crônico” de desorganização que assolava naqueles tempos o anarquismo.
Contudo, este breve discurso acabou por tomar também um outro inesperado destino. O debate composto pela Plataforma e suas críticas acabaria por se tornar um dos principais dentro do campo anarquista. Até hoje ele é uma indispensável referência para a discussão da organização política anarquista, isto pois ele passeia por assuntos diversos e essenciais como, por exemplo, o funcionamento do partido revolucionário anarquista, quais são seus objetivos e qual é seu papel na luta de classes. Mesmo libertários mais recentes, como José Antonio Gutiérrez, se dedicaram a esboçar linhas a respeito desta fértil polêmica.
A oposição deste projeto à proposta de Síntese encontra-se essencialmente em dois polos – a composição da organização e o funcionamento dela. Enquanto os partidários da Plataforma defendem uma organização de anarquistas identificados com um programa em suma anarco-comunista, os sintetistas projetam uma organização aberta a todos que reivindiquem a anarquia. Enquanto os plataformistas entendem que a unidade (teórica e prática), a disciplina e a responsabilidade coletiva são elementos essenciais para uma organização anarquista intervir na realidade política e na correlação de forças políticas da luta classista, os arautos da Síntese acusam este trio de ser contraditório com os princípios anarquistas2.
Enfim, a Plataforma é ainda hoje componente viva da malha discursiva acerca de como se organizar as militantes fileiras anarquistas. Um texto que parte do pressuposto da necessidade urgente de organização dentro do anarquismo3, argumenta a favor da reunião dos militantes anarquistas de sua época ao redor de uma estrutura orgânica, um programa, uma estratégia e uma teoria, intentando assim romper o isolamento entre estes e aglutinar os setores pró-organização do anarquismo4.
1.3 Diálogo com o marxismo
Sem de maneira alguma querer afirmar uma pretensa igualdade entre anarquismo e marxismo, o diálogo entre estas correntes socialistas é indubitavelmente bastante comum desde suas origens – sabendo que ambas surgem nas mesmas épocas e classes, dificilmente seria diferente. O próprio Marx intensamente debatera política, filosofia, estratégia, economia etc, tanto com Proudhon quanto com Bakunin. O fundador do marxismo dedicara um livro inteiro ao primeiro – “A Miséria da Filosofia” – diversos artigos ao segundo, além da conhecida peleia na Associação Internacional dos Trabalhadores. Libertários e marxistas sempre disputaram politicamente, junto com outras correntes e projetos, os movimentos de massa da classe trabalhadora.
Apesar desta especie de tradição dentro dos meios socialistas, parece-me importante ao discorrer a respeito da Plataforma realçar o quanto esta é também um diálogo com o bolchevismo. Em diversos de seus pontos são apresentadas diferenças e semelhanças com o projeto dirigido por Lênin – muitas vezes citando nominalmente o partido de seus seguidores. O ponto sete, “O período de transição”, da primeira parte do documento, “Seção geral”, curiosamente nada propõem, tão somente marca posição: critica e nega o conceito leninista de período de transição – reafirmando assim uma posição consideravelmente comum na época de defesa intransigente da derrocada total do capitalismo e do Estado-nação através da revolução social, na compreensão de que “o anarquismo não deve assimilar traços da velha ordem em seu programa, (traços d)as tendências oportunistas de sistemas e períodos de transição”. Enquanto no ponto cinco, “A negação do Estado e Autoridade”, a profunda e eterna divergência que separa anarcos e comunas a cerca da necessidade de um Estado socialista de transição é amplamente explorada; no ponto seguinte, “O papel das massas e o papel dos anarquistas na luta social e na revolução social”, uma meticulosa exposição das diferenças neste assunto entre os militantes do Dielo Trouda e os bolcheviques é redigida.
Já outros trechos, por outro lado, apresentam aspectos compartilhados entre as duas correntes revolucionárias do socialismo – como a necessidade da revolução social violenta, ou mesmo a concepção de uma sociedade inexoravelmente apartada por um abismo de classe ou a crítica à democracia burguesa5, e, há parcial (realmente gostaria de enfatizar o parcial) concordância até em aspectos da concepção de partido político e papel deste na atuação perante os sindicatos e as massas. O primeiro ponto do documento, “Luta de Classe, seu papel e significado”, além de colocar uma concepção de sociedade bastante semelhante a marxista, claramente esboça também uma divisão entre infraestrutura e superestrutura onde a primeira é determinante6. No segundo, aparece a necessidade da violência revolucionária, no quarto, a critica a democracia.
Longe de ser algo como um desvio do projeto anarquista, este diálogo com o marxismo parece-me, além de recorrente dentro do próprio anarquismo, absolutamente compreensível ao nos remetermos ao calendário e a geografia onde e quando a Plataforma brota. Como já fora colocado neste texto, este documento ambiciona responder as debilidades organizativas dos libertários durante o período revolucionário russo e ucraniano – processo o qual terminara com a vitória do partido bolchevique. O diálogo com o projeto político articulado por Lênin era absolutamente inexorável.
2. Arsenal teórico
2.1 Sociedade e luta de classes
Com os versos “Não há uma humanidade / Há uma humanidade de classes / Escravos e Senhores” inicia-se a poesia plataformista. Ao se ler este documento comunista libertário não é possível ter-se dúvidas de que o seu cerne é a luta de classes, é a divisão da sociedade capitalista entre burguesia e proletariado – entre quem detêm a liberdade de comprar a força de trabalho e quem detêm a liberdade de a vender. A partir desta oposição elementar, segundo o texto e como já fora comentado, se movem os governos e as culturas (“ciência, educação, arte”). A contradição entre a classe trabalhadora produtiva e a capitalista proprietária ociosa transborda por cada linha do projeto plataformista,
É a luta de classes que no limite explica tanto a miserável situação atual da sociedade e a urgência de sua transformação revolucionária, quanto a própria existência e pertinência do anarquismo e de sua organização partidária. Pois “na história da sociedade humana esta luta de classe tem sido sempre o fator primário que determinou a forma e estrutura destas sociedades”; mas também “tudo nesta sociedade: cada empresa considerada separadamente, assim como todo o sistema de Estado, não é nada mais do que o baluarte do capitalismo”. E é também da massa trabalhadora em luta que nasce o anarquismo – um projeto de sociedade sem estado e autogerida de trabalhadores. A Plataforma é categórica: “o anarquismo não se origina de reflexões abstratas nem de um intelectual ou filósofo, mas sim da luta direta de trabalhadores contra o capitalismo”.
Contudo, pensando na perspectiva de diálogo com o marxismo e em especial com o leninismo, há uma relevante diferença a ser realçada a respeito das classes sociais. Apesar da discussão de que se haveria ou não uma maior enfase no proletariado urbano ser possível e mesmo pertinente, é inquestionável o esforço no sentido de salientar a importância do trabalhador rural no processo revolucionário. Por repetidas vezes a Plataforma reafirma que “As principais forças da revolução social são a classe trabalhadora urbana, as massas de camponeses”7. Este destaque ao papel do trabalhador rural diferencia profundamente o projeto plataformista do bolchevique.
2.2 Indivíduo, humanidade e consciência
Coerente com o princípio da divisão da sociedade moderna em classes antagônicas, os libertários eslavos proclamam igualmente que o projeto anarquista não é de maneira alguma “produto de aspirações humanitárias”. Pelo contrário, o anarquismo para os plataformista “não é produto de toda humanidade atual”, mas sim das “massas trabalhadoras”. Estas afirmações podem num primeiro momento soarem como obviedades, dada a defesa enérgica do classismo. Entretanto, ao confrontarmos elas com a pretensão à universalidade – sempre recorrente na modernidade – seu interesse peculiar nos é revelado.
Esta postura anti-humanitária da Plataforma acaba por diferenciá-la sensivelmente de outros projetos utópicos8políticos presentes na modernidade, pois o padrão após o iluminismo revolucionário é tanto a pretensão à universalidade – a proposta se pretende válida para qualquer classe, cultura, raça, gênero, para qualquer calendário e qualquer geografia – quanto o caráter redentor – assegura-se a posse da fórmula alquímica do famoso emplastro Brás Cubas, capaz de livrar a humanidade inteira de todos os males e sofrimentos. Os plataformistas, pelo contrário, delimitam tanto as fronteiras dos territórios, dos calendários e das classes de onde se origina e para qual se destina o projeto do anarquismo, quanto também as aspirações. Para eles “O nascimento, o florescimento, e a realização de ideias anarquistas têm suas raízes na vida e na luta das massas trabalhadoras e estão inseparavelmente ligadas ao seu destino”. Mas também, para eles o horizonte do anarquismo – o comunismo libertário – não é exatamente o paraíso na terra, mas sim uma sociedade onde os meio de produção sejam geridos pelos trabalhadores e a política administrada por conselhos comunais autogeridos e articulados através do federalismo. A febre amarela e outras moléstias continuariam existindo…
Este posicionamento da Plataforma, por outro lado, parece-me diferenciá-la também da maior parte dos projetos marxistas. Pois, apesar da inegável convicção dos plataformistas de que a via do comunismo libertário através da revolução social violenta é a melhor para evitar a derrota das massas trabalhadoras e que suas consequências como a “violência, exploração, escravidão e opressão” continuem ”a reinar no mundo como antes”, estes não compartilham nem da noção de comunismo como um sociedade tendendo à perfeição que viria após um período de transição socialista, nem da ideia de que as classes trabalhadoras portariam à possibilidade de uma consciência mais universal, mais verdadeira e mais humanitária, e nem mesmo de que o anarquismo representaria a consciência política plena ou máxima das massas. Para os plataformistas, o anarquismo é tão somente uma visão de mundo política (um projeto) originado nas classes trabalhadoras, e que deve traçar estratégias e horizontes para estas. A anarquia não é uma ciência, tampouco uma consciência universal.
Partindo da tese de que a Plataforma é um documento fortemente assentado na sua realidade específica, parece-me plausível extrapolar que aspectos desta situação também tenham influência nesse posicionamento a respeito do que é o anarquismo. O forte enraizamento nos movimentos de massa dos autores deste texto durante o período revolucionário provavelmente nos ajuda a explicar o porque da ênfase de que o anarquismo não é um projeto humanitário, mas sim de certas classes sociais da época moderna. Num momento como o revolucionário eslavo, onde a luta de classes se acirrara numa guerra aberta entre estas, torna-se evidente que o anarquismo só pode ter origem e se destinar às classes trabalhadoras – seria pura ingenuidade acreditar que setores da burguesia cortariam seus pulsos e abraçariam o projeto da revolução social violenta. Aliado a isto, a derrota do projeto comunista libertário frente à vitória do projeto leninista que reivindica classes semelhantes, pode contribuir na compreensão do porque os plataformistas entendem o anarquismo como umavisão de mundo da classe, não como a única possível – pouco sentido faria proclamar a anarquia como a única e verdadeira representante dos trabalhadores imediatamente após esta ter sido derrotada pelo bolchevismo dentro da disputa política interna a estas classes. Situando a Plataforma em seu tempo e espaço, torna-se claro que dificilmente se defenderia qualquer outra posição.
Sobre a discussão que pode ser abarcada como a respeito da consciência, gostaria de adiantar brevemente algo que analisarei quando discorrer sobre a relação entre o partido anarquista e os movimentos de massa. Ainda que os plataformista afirmem a importância das massas trabalhadoras terem clareza acerca das tarefas necessárias da revolução social, este processo – que poderia ser descrito como uma espécie de “tomada de consciência” – se dá essencialmente a partir do fortalecimento das organizações de base da classe trabalhadora, e da atuação direta destas no acirramento da luta de classe. Os anarquistas, neste sentido, não devem se limitar a atuar nos sindicatos como “indivíduos e propagandistas”, não devem se reduzir a meros professadores dos princípios e discursos libertários – isto pois “a educação em si não é o suficiente” – devem disputar e “participar do sindicalismo revolucionário” como uma força organizada mas sempre articulada com um projeto amplo e anarquista de transformação revolucionária. Em outras palavras, dentro do paradigma aqui estudado, o processo de tomada de consciência não pode ser nunca interpretado como exclusivamente de ensino e/ou pesquisa intelectual e/ou pedagógica, mas sim como parte interlaçada e intrínseca do empoderamento e da auto-organização da própria classe.
Por último, parece-me que similarmente devido ao balanço crítico da experiência prática vivida e das tarefas necessárias encontradas durante esta árdua estrada, faz-se igualmente compreensível o porquê da postura fortemente contrária ao individualismo, suas soberanias e liberdades pretensamente absolutas. Enquanto os anarquistas que Makhno chamava pejorativamente de “turistas”9 “se dedicaram à sistemática ocupação das residências burguesas, nas quais se alojaram e viveram para o seu bem-estar”10, aqueles que (como ele) se engajaram nas lutas e organizações das massas trabalhadoras sentiram na própria pele as catastróficas consequências da infantil desorganização dos partidários da acracia – surpreendentemente mesmo entre os libertários que discursavam a favor da organização. É a partir deste balanço concreto que devemos ler os ataques presentes na Plataforma aos amantes de indivíduos e sujeitos. É também deste mesmo local que podemos entender a ênfase dada tanto a responsabilidade coletiva quanto a disciplina revolucionária, para a realização e sucesso de qualquer organização. Os egos devem sim se dissolver, ao menos parcialmente, no mar organizativo. A libertária liberdade, para os plataformistas, é essencialmente coletiva e classista – está além da iluminista e liberal liberdade individual, humana e universal.
2.3 Utopia comunista libertária
Outra noção básica e inegligenciável da Plataforma é a de utopia comunista libertária. Por mais que particularmente considere a segunda parte do texto, a “seção construtiva”, como talvez a menos densa, no sentido de suscitar uma quantidade menor de debates para hoje, é ela que principalmente nos apresenta os elementos componentes desta visão de mundo antissistêmica. Esta utopia – pouco ou nada idealista – em suma desenha uma sociedade autogerida coletivamente pelas trabalhadoras. Um lugar onde tanto a economia (rural e urbana) quanto a política – ou mesmo a defesa militar – seja administrada por conselhos de base (sovietes) articulados através do federalismo.
O primeiro elemento a ser destacado deste projeto é o fato dele ser integralmente uma defesa das formas mais radicalizadas que o poder das massas trabalhadoras adotou durante o recente período revolucionário. A produção e o consumo foi gerida em diversas regiões por conselhos autogeridos de trabalhadores, assim como a defesa militar dos territórios controlados pelo poder dos sovietes fora organizada por exércitos guerrilheiros semelhantes ao proposto pelo Dielo Trouda. Nada do anarquismo que é proposto neste documento “é o resultado de esforços particulares, nem o objeto de pesquisas individuais”. A u-topia plataformista, na verdade, possuí um topos bem definido.
Lendo este manifesto quase noventa anos depois, é provável nos perguntarmos se é necessário um programa anarquista esmiuçar uma proposta de organização da produção e do consumo para a sociedade de trabalhadoras. É preciso os anarquistas terem posições unitárias sobre este assunto pós-revolução? Não são os próprios movimentos das massas que acabam por definir as formas organizativas tomadas? Estes questionamentos apesar de me parecerem pertinentes para a atualização do debate proposto pela Plataforma, eles se esquecem de que o momento em que fora lançado a proposta plataformista era de intensa agitação revolucionária, e também de que este discurso é direcionado essencialmente para militantes libertários ativos no território da União Soviética, onde haviam estourado intensos processos revolucionários. A Plataforma não foi escrita para uma época e um território de hegemonia total e estável do capitalismo, por isto me parece que o debate acerca da organização da sociedade revolucionária se impunha.
Dos elementos que constituem o projeto comunista libertário, o posicionamento defendido sobre a questão da terra é talvez o mais interessante. A posição bastante clássica no anarquismo é defendida – mais ou menos a mesma posição exposta por Mikhail Bakunin nos debates da AIT sobre a questão agrária com Karl Marx. Num primeiro momento da sociedade revolucionário, os camponeses individuais não devem ser forçados a coletivizarem suas terras. Contudo, como a propriedade individual da terra é vista como perigosa para o comunismo – pois “uma economia privada para a agricultura, assim como em uma indústria privada, leva a um comércio, acumulação, propriedade privada e restauração de capital” – os anarquistas devem incentivar de todas as maneiras possíveis a coletivização da terra visando o pleno “comunismo na agricultura”. Mesmo sendo ao menos em partes escrito por militantes nascidos nas classes camponesas11, curiosamente o projeto plataformista tem como horizonte explicito o fim do campesinato. No limite se defende a substituição de qualquer média e pequena produção rural por uma espécie de agroindústria comunista.
Por fim outro ponto importante deste projeto utópico é que ele incluí uma proposta de exército para realizar a defesa da revolução. Inspirados no processo eslavo, os plataformistas afirmam que as classes dominantes lutarão desesperadamente “tentando reconquistar o poder e os privilégios dos quais foram desprovidas”, e, devido a isto, uma guerra civil “de muitos anos” será inevitável. Afim de garantir a vitória proletária faz-se necessário “uma força guerrilheira que corresponda à magnitude da tarefa”. Para os anarquistas do Dielo Trouda, esta guerrilha deve ter como características: um comando e um planejamento estratégico e tático unificado; ser formado por trabalhadores através de alistamento voluntário; se pautar na disciplina revolucionária e ser submisso às organizações das massas trabalhadoras (no caso eslavo, aos sovietes).
3. O Partido Partindo da Plataforma
3.1 Processo de organização
Ainda que não haja nenhum ponto especificamente dedicado ao debate de como se dará o processo de organização do partido anarquista projetado pela Plataforma, há uma inquestionável proposta que permeia todo o manifesto como um pressuposto. Supunha-se que a organização política teria sua origem a partir da reunião de “todos os elementos saudáveis do movimento anarquista” (por saudável acredito que pretendia se referir àqueles defensores da organização anarquista e do comunismo libertário). O partido seria o resultado da união de ativos libertários militantes nos movimentos das massas trabalhadoras em torno de um programa e uma estrutura orgânica. Como já foi exposto, a Plataforma é um documento direcionado às próprias fileiras anarquistas, mas em especial aos atuantes no território soviético.
Esta questão, mesmo que não possuindo grande destaque no texto da Plataforma, parece-me longe de ser secundária – ainda mais se pretendermos fazer a nossa leitura dialogar com a realidade na qual estamos hoje inseridos. Dado o fracasso das iniciativas de organização daquela época de um partido anarquista a partir das indicações plataformistas, mas também dada a fragilidade e a insuficiência inerente às análises que buscam explicar a derrota dos projetos anarquistas exclusivamente por fatores e causas externas ao próprio movimento12, parece-me plausível supor a existência de equívocos – nalguma escala – internos à própria proposta de organização contida na Plataforma. Apesar de ser facilmente compreensível os motivos pelos quais os eslavos reunidos no Dielo Trouda acreditem que uma proposta adequada de programa e de estrutura orgânica seria “o mínimo necessário e urgente” que possibilitaria o agrupamento mais ou menos no curto prazo de “todos os militantes do movimento anarquista organizado” – pois mesmo com a participação relativamente tímida do anarquismo enquanto projeto político durante o processo revolucionário russo, na década de vinte do século vinte o anarquismo se encontrava fortemente presente nos movimentos das massas trabalhadoras ainda que disperso e desunido – faz-se necessário admitir que os plataformistas erraram ao apostar todas suas fichas nos anarquistas de sua época. A Plataforma foi derrotada por completo na sua ambição de unificar os infinitos programas e estratégias anarquistas.
Mas, extrapolando as intenções da proposta plataformista e importando-a para nosso tempo e espaço, parecer-me-ia um erro rude intentar criar um partido a partir da reunião dos atuais anarquistas. Pois, se este plano fracassara totalmente quando e onde persistia um forte movimento libertário de fato originado e ativo na luta de classe; hoje e aqui, quando o anarquismo se reduz à um patético nicho de pouquíssimos grupos e indivíduos dispersos e de maneira geral bastante descolados dos movimentos da classe trabalhadora, onde o movimento libertário não mais “têm suas raízes na vida e na luta das massas trabalhadoras”; indubitavelmente seria ingenuidade em demasia repetir este erro.
Aqueles que compartilham de uma concepção de anarquismo semelhante aos militantes do Dielo Trouda, devem reconhecer que uma organização política anarquista só pode partir duma necessidade real dos próprios movimentos das massas trabalhadoras, de maneira alguma pode resultar dum processo de autocrítica de setores do atual nicho anarquista/autonomista/libertário – isto pois se o anarquismo ou é classista ou não é anarquismo, ele não pode se originar dum processo interno de indivíduos e grupos apartados dos movimentos de resistência da classe. Não existe cura alguma para a doença que causa o estado de “desorganização geral crônica” desse tal movimento libertário não-classista. Resta tão somente a eutanásia13.
Ademais, dentro da perspectiva socialista libertária, uma organização que se origine fora da luta de classe, que não surja como uma necessidade concreta dos movimentos de trabalhadores (sejam eles urbanos, rurais, desempregados ou estudantes14), inevitavelmente não poderá ter qualquer papel político relevante na transformação social revolucionária. Isto pois, para uma organização “alienígena” não resta alternativas senão atuar de maneira vanguardista ou recuada. Caso o suposto partido atue no movimento pautado num programa e numa estratégia, ele estará sendo vanguardista pois parte da premissa de que é possível um agrupamento externo à classe “iluminar” os pretensamente incapazes trabalhadores, ou seja, comete o erro de pretender “compreender melhor os verdadeiros interesses do povo, mais do que o próprio povo”15. A única outra opção que restaria a uma organização parida fora do berço classista, advinda duma autocrítica interna ao nicho, seria atuar sem programa e sem estrategia, seria atuar como mero apoio aos movimentos de resistência. Neste caso o anarquismo no máximo poderia chegar a ser uma grande e amorfa massa de manobra a serviço de programas e interesses alheios aos seus, mas nunca teria qualquer relevância para a revolução16.
Essas são algumas das razões que me fazem não depositar fé e esperança nos atuais esforços de reorganização política do anarquismo que conheço. A respeito dos agrupamentos partidários bakunianistas17, nada tenho a dizer pois pouco os conheço. Já sobre os que visam importar o uruguaio especifismo para nossa região18, surgem quase que invariavelmente de indivíduos e grupos de afinidade chateados com a constatação do óbvio, com a constatação do caráter “deliciosamente inofensivo”19 de seus respectivos nichos libertários. Nascem por uma vaidosa necessidade de autoafirmação interna ao nicho, não por uma necessidade organizativa oriunda da realidade contemporânea e conterrânea da luta de classe – não são setores do movimento sindical (urbano e rural) articulados com setores do movimento estudantil (o único atualmente capaz de abarcar a juventude da classe trabalhadora enjaulada nas escolas estatais) que organizam um partido anarquista devido à uma necessidade concreta da luta que estes diariamente travam a partir de seus lugares de trabalho e estudo e através de seus sindicatos, centros acadêmicos e outras entidades das de abaixo; mas sim um grupo de individualidades autoafirmadas anarquistas apartadas destes movimentos e que, geralmente, nem mesmo tiveram qualquer experiência efetiva de militância classista, tão somente práticas políticas assistencialistas/comunitárias/culturalistas e ativistas. Estes agrupamentos estão tão distantes de ser um partido anarquista da classe trabalhadora20 quanto um unicórnio de ser um cavalo. Repetem como farsa o que ontem fora uma tragédia.
No fundo, sem querer alongar-me em críticas pouco relevantes – pois direcionados a grupos políticos politicamente pouco relevantes – o erro cometido tanto pelos eslavos do Dielo Trouda quanto pelos libertários “arrependidos” de hoje é, no fundo, o de não reconhecer um dos princípios básicos da política: o princípio de que toda ação deve ser tomada num momento e num lugar oportuno para poder ser bem-sucedida. Não basta constatar a ignóbil situação do dito movimento dito libertário e a imprescindibilidade do partido anarquista para o sucesso de uma revolução socialista com perspectiva libertária, para então criar de imediato um programa perfeito e uma fraterna organização partidária – como que retirada da cartola de algum mágico. As peças do jogo político não se movimentam num espaço e num tempo abstratos, teóricos e ideais, mas sim num tabuleiro real e dado: já os gregos da antiguidade sabiam da importância do kairóz para toda e qualquer empreitada política.
NOTAS
1Citado da “Plataforma Organizacional dos Comunistas Libertários”. Todas as próximas citações – sem notas de rodapé – também serão retiradas da mesma fonte
2“Isto é anarquismo? Na minha opinião, isto é um governo e uma igreja. É verdade que não há polícia nem baionetas, nem o fiel rebanho disposto a aceitar a ideologia imposta. Mas isso significa apenas que tal governo seria impotente e impossível, e que tal igreja seria uma fonte de heresias e cisões. O espírito e a tendência permanecendo autoritários, o efeito educativo será antianarquista.” Errico Malatesta, que a bem da verdade não é um defensor da síntese mas crítico da Plataforma, em “Um Projeto de Organização Anarquista”
3“Se esta União se descreve a si mesma como um partido ou como outra coisa, é um assunto de importância meramente secundária.” Escreveria Makhno durante esta época
4Enquanto os individualistas são explicitamente excluídos, os anarco-sindicalistas são criticados com maior ternura
5A trecho da Plataforma: “o parlamento e o governo representativo nas democracias não passam de órgãos executivos da burguesia” relembra em demasia a conhecida fórmula marxista
6Como negar a presença desta visão de mundo, tendente ao economicismo, ao ler um trecho como “O regime social e político de todos os estados está acima de todo e qualquer produto da luta de classe. A estrutura fundamental de qualquer sociedade nos mostra o estágio no qual a luta de classe tem gravitado e deve ser encontrada. A mínima mudança no curso das batalhas de classes, nas posições relativas nas quais se encontram as forças da luta de classe, produz modificações contínuas no tecido e na estrutura da sociedade.”
7A continuação deste trecho é “e uma parte dos ‘pensadores trabalhadores’”, entretanto, além de raramente serem citados os tais “pensadores trabalhadores”, logo na sequência no texto há uma relevante ressalva a respeito destes
8Por utopia gostaria de me referenciar principalmente aos discursos marxistas que especificamente a conceituam, em contraposição aos discursos que servem à legitimação da vigente ordem, como uma visão de mundo antissistêmica. Michael Löwy, por exemplo
9Nestor Makhno no texto “Sobre a disciplina revolucionária”
10Idem
11Makhno, ato que tudo indica, é fruto da cultura cossaca
12Mesmo Lenine – que longe está de ser um acrata – defende que “o que mais contribuiu para debilitar o anarquismo na Rússia foi a possibilidade que teve no passado (década de 70 do século XIX) de alcançar um desenvolvimento extraordinário e revelar profundamente seu caráter falso e sua incapacidade de servir como teoria dirigente da classe revolucionária” (Vladimir Lenine em “Esquerdismo, doença infantil do comunismo”). O anarquismo não é uma inocente vítima política da repressão estatal ou de qualquer outra ação promovida por um outrem ator político, o fracasso do projeto acrata é devido aos seus próprios equívocos – seja no século XIX, seja no XX(ou mesmo no XXI…)
13Neste ponto, concordo com Murray Bookchin. Já no fim de sua vida, dedicou-se a combater o que ele nomeou de “anarquismo de estilo de vida” (lifestyle anarchism), Depois de dispender muito de sua energia nesta peleia contra nuvens e moinhos, o velho anarquista acaba por reconhecer a total inutilidade que é tentar manter qualquer tipo de relação com o residual e caricatural nicho anarquista/libertário/autonomista e, pouco antes de vir a falecer, rompe por completo com estes
14Inclui “estudantes” como uma provocação – é óbvio que estes não se reduzem à classe trabalhadora, muito menos o inverso. Todavia, parece-me inegável que, hoje e aqui, praticamente toda a juventude da classe trabalhadora está mais na escola do que na oficina, ou seja, que “ser estudantes” hoje é sim um momento da vida do trabalhador. Pretendo aprofundar este debate num texto posterior
15Mikhail Bakunin em “Estatismo e Anarquia”
16Discorro sobre este assunto, baseando-me principalmente no José Gutiérrez, num texto outro chamado “Nem vanguarda nem retaguarda”
17Tipo UNIPA
18Tipo OASL
19Qualificação dada por Murray Bookchin ao pretenso movimento libertário contemporâneo em “Anarquismo social ou anarquismo de estilo de vida: um abismo intransponível”
20Desculpem-me a redundância enfática
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